terça-feira, 10 de novembro de 2009

Dos Muros

A Europa comemorou ontem em Berlim 20 anos sobre a queda do muro, mais em jeito de "show business" do que com a solenidade e respeito histórico que me inspira a ocasião. Não vou tão longe que diga que as comemorações devessem ter sido "cinzentas", como o betão do muro outrora o foi; festa é festa!... Contudo, "show business" é somente uma coisa: entretenimento!

Será que a forma é relevante? Penso que sim. O entretenimento é uma forma de nos esquecermos, ou de nos fazerem esquecer, alguma coisa.

Quem conheça as realidades e o pensamento quotidiano dos povos actuais da Europa de Leste (sem que seja pela televisão), não pode deixar de olhar para a celebração de ontem com alguma ironia, talvez mesmo desconfiança.

A queda do muro foi sem dúvida um acontecimento feliz e marcante para muitas famílias separadas, liberdades condicionadas ou severamente censuradas; marcou o início do fim de regimes opressores por vezes brutais e sem desculpa.

Por outro lado, também é certo que com o seu desaparecimento - politicamente - o capitalismo ficou sem o devido contra-ponto de força, logo deixando morrer - e passando depois a querer assassinar - o welfare state, tornando-se selvagem e desumano a larga escala, como o é hoje.

De certa forma aquele muro protegia-nos a nós, oprimindo os de Leste. Não lamento a sua queda, apenas o que a queda também veio a catalisar de indesejado para todos nós, seja qual for a parte do mundo em que nos encontremos.

A ausência de sentido de si nas comemorações de ontem já me teria sido suficiente para achar estranha a superficialidade da festa, por coincidência pouco mais de um ano após o Setembro negro que assinalou a erupção da tremenda crise global desencadeada pela falta de escrúpulo e pela ganância humana destilada anos a fio a ocidente.

E no entanto, a Alemanha de hoje é um país tão ou mais dividido do que o foi antes de 1989; esta é a simples verdade.

Merkel e Barroso talvez precisassem ontem de lançar duas coisas: o final do embróglio do tratado de Lisboa, dando o mote simbólico para uma Europa mais unida politicamente (ou assim querendo fazer parecer); e a tentativa de revitalização do espírito da maior potência da Europa, de certo modo o seu coração histórico, económico e social mais recente.

Ofereceram-nos assim uma espécie de circo.

Tenho falado sempre que posso com o povo dos países de Leste que vou visitando (também da Rússia, mas a Rússia é um caso à parte). Têm-me calhado taxistas, recepcionistas, informáticos, porteiros, advogados, cientistas, militares, médicos, músicos, homens de negócios e até políticos...

Ao fim de algum tempo de partilha, o seu sentir aponta quase sempre ao mesmo: sejam jovens ou mais velhos, guardam grande nostalgia por alguns aspectos da vida "pré-muro". Devo aqui avisar que não é, de todo, aquela nostalgia primária e radical, mais ideológica ou mais analfabeta, do povo descendente do salazarismo, ou do franquismo, para referir as nostalgias de sentido oposto que conheço melhor.

Por entre os "esqueletos" e a dor das más memórias que todos têm presente, revelam, geralmente de forma muito objectiva e simples, uma faceta muito positiva da vida dessa época. Não é uma nostalgia que fundamente psicologicamente o sentido desse tempo da sua vida - estão bem cientes do que os seus tiranos lhes fizeram - nem sequer uma nostalgia fruto da ingenuidade ou do choque de duas vidas em uma só... é algo mais misterioso do que isso...

Adquiri por diversas vezes a sensação que aquilo que mais continuavam a odiar nos seus regimes era a oligarquia (hoje "democratizada"), e os carrascos internos que tinham deitado tudo a perder por faltas de carácter inerentes à natureza humana (especialmente quando munida de poder absoluto).

O comunismo pode ter morrido formalmente, mas não no coração ou na razão mais profunda dessas pessoas com quem me cruzei ou que conheci. Sentiam, muitas delas, ter falhado por pouco uma primeira experiência societária alternativa, com méritos próprios a não substimar.

Já depois de conhecer algumas destas realidades emocionais, fui ainda e outra vez completamente surpreendido durante uma visita que fiz à Alemanha de Leste. Por circunstâncias que não vêm ao caso, tive então a oportunidade de perceber a dimensão e profundidade da grande clivagem que aí hoje se vive..

"Antes do muro era um só povo. Hoje, são dois." As palavras são deles, não são minhas.

Merkel e Barroso bem se podem envolver de "show biz". A história da Alemanha ainda agora começou.

Já agora, e por ser imperdível, leiam: http://www.publico.pt/Mundo/foi-o-melhor-dos-tempos-foi-o-pior-dos-tempos_1409108

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