Texto de António Gomes Mota
"O Manuel era, aos 12 anos, meu colega no 3º ano do liceu, um bom companheiro e um bom aluno.Fez por estes dias 40 anos que o pai, escriturário numa empresa de transportes se suicidou. E o Manuel saiu da escola. O gesto do pai cortara qualquer hipótese de pensão à mãe, doméstica e, tendo apenas uma irmã mais nova, ele arcou com as despesas da casa. Empregou-se como ajudante numa mercearia, entregando cabazes volumosos das compras da clientela. Foi com o sorriso que me contou a novidade, já tinha salário e até lhe sobravam uns trocos para ir ao futebol.Dois anos depois conseguiu entrar para paquete de uma pequena empresa comercial. Teve um aumento de ordenado e um horário certo o que o levou a pensar voltar à escola, à noite, ideia que o 25 Abril num ápice matou, com a falência da empresa.Teve sorte e logo se empregou, com pior salário e horário mais duro, numa carpintaria. E, aos 16 anos, apaixonou-se pelas serras, pelo polimento e pelo verniz. Sentia que nascera para aquilo. E ali ficou 10 anos, no fim dos quais já era o braço direito do patrão, até que este aceitou uma proposta de compra da carpintaria. O Manuel depressa percebeu que o preço passara a comandar tudo e o seu saber deixara de contar. Saiu. Entretanto, a irmã licenciara-se em História, iniciando-se como professora de liceu, o Manuel casou-se e a mãe ficou a viver com ele.Na década seguinte, teve vários empregos, dois filhos, recuperou o sonho de voltar à escola e completou, já na linguagem de hoje, o 9º ano. Há 10 anos ingressou na secção de armazém de uma multinacional, onde ainda está hoje. Foi progredindo até chefe de secção e mudou-se para uma pequena vivenda, para lá de Loures, onde foi construindo na garagem, a troco de prescindir de ter carro, pelo espaço e pelo dinheiro, a sua carpintaria.Hoje tem como maior aspiração chegar ao dia em que, reformado com pensão completa, passe todos os dias na sua carpintaria, à volta dos móveis, o que já faz nas horas vagas trabalhando para os amigos, incapaz de cobrar preços decentes, mas sentindo-se feliz sempre que entra na garagem.Há 40 anos que desconta para a Segurança Social e terá de continuar a trabalhar para ter a reforma completa e assegurar que os filhos terminem os estudos.O Manuel foi solidário com a família, quando mais ninguém o foi, ofereceu sem uma queixa, o final da sua infância, a adolescência e juventude. Seria justo que pudesse em breve ter o tempo para realizar um sonho tão simples, o de entrar todos os dias, com um sorriso aberto, na sua garagem.Terá que esperar, porque na parte final da sua vida tem de ser outra vez solidário, trabalhar e descontar mais tempo, para outros viverem melhor. Há leis e reformas que, sendo necessárias, deveriam respeitar nas entrelinhas a vida de pessoas como o Manuel."