sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Uma Vida (texto de António Gomes Mota)


Texto de António Gomes Mota


"O Manuel era, aos 12 anos, meu colega no 3º ano do liceu, um bom companheiro e um bom aluno.Fez por estes dias 40 anos que o pai, escriturário numa empresa de transportes se suicidou. E o Manuel saiu da escola. O gesto do pai cortara qualquer hipótese de pensão à mãe, doméstica e, tendo apenas uma irmã mais nova, ele arcou com as despesas da casa. Empregou-se como ajudante numa mercearia, entregando cabazes volumosos das compras da clientela. Foi com o sorriso que me contou a novidade, já tinha salário e até lhe sobravam uns trocos para ir ao futebol.Dois anos depois conseguiu entrar para paquete de uma pequena empresa comercial. Teve um aumento de ordenado e um horário certo o que o levou a pensar voltar à escola, à noite, ideia que o 25 Abril num ápice matou, com a falência da empresa.Teve sorte e logo se empregou, com pior salário e horário mais duro, numa carpintaria. E, aos 16 anos, apaixonou-se pelas serras, pelo polimento e pelo verniz. Sentia que nascera para aquilo. E ali ficou 10 anos, no fim dos quais já era o braço direito do patrão, até que este aceitou uma proposta de compra da carpintaria. O Manuel depressa percebeu que o preço passara a comandar tudo e o seu saber deixara de contar. Saiu. Entretanto, a irmã licenciara-se em História, iniciando-se como professora de liceu, o Manuel casou-se e a mãe ficou a viver com ele.Na década seguinte, teve vários empregos, dois filhos, recuperou o sonho de voltar à escola e completou, já na linguagem de hoje, o 9º ano. Há 10 anos ingressou na secção de armazém de uma multinacional, onde ainda está hoje. Foi progredindo até chefe de secção e mudou-se para uma pequena vivenda, para lá de Loures, onde foi construindo na garagem, a troco de prescindir de ter carro, pelo espaço e pelo dinheiro, a sua carpintaria.Hoje tem como maior aspiração chegar ao dia em que, reformado com pensão completa, passe todos os dias na sua carpintaria, à volta dos móveis, o que já faz nas horas vagas trabalhando para os amigos, incapaz de cobrar preços decentes, mas sentindo-se feliz sempre que entra na garagem.Há 40 anos que desconta para a Segurança Social e terá de continuar a trabalhar para ter a reforma completa e assegurar que os filhos terminem os estudos.O Manuel foi solidário com a família, quando mais ninguém o foi, ofereceu sem uma queixa, o final da sua infância, a adolescência e juventude. Seria justo que pudesse em breve ter o tempo para realizar um sonho tão simples, o de entrar todos os dias, com um sorriso aberto, na sua garagem.Terá que esperar, porque na parte final da sua vida tem de ser outra vez solidário, trabalhar e descontar mais tempo, para outros viverem melhor. Há leis e reformas que, sendo necessárias, deveriam respeitar nas entrelinhas a vida de pessoas como o Manuel."

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